History of the breed

A história de uma raça é o conhecimento que resulta da junção da base documental escrita com as tradições e contos transmitidos de geração em geração. No fundo, da cultura dos povos. Contudo, há um factor comum a todas as raças caninas actuais. Todas elas estão indelevelmente ligadas à evolução das civilizações e da humanidade, onde as migrações planetárias que foram ocorrendo ao longo dos milénios assumiram relevância incontornável.

Se no início se dava primazia à fixação de características funcionais que melhor dotavam os cães para o trabalho, hoje há raças onde, de todo, essas características não existem. Procura-se antes, características que os tornem excelentes animais de companhia e, em outro domínio, belos exemplares de participação em exposições e concursos de morfologia.

O Cão da Serra de Aires, nas suas exclusivas peculiaridades que o diferenciam e evidenciam a nível mundial – é o único cão pastor de pêlo comprido que não apresenta sub-pêlo – alia de forma referencial duas características: beleza e funcionalidade. De cão humilde, com excepcionais aptidões para o trabalho, fez uma notável transição para exposições de morfologia, obtendo resultados gloriosos em campeonatos nacionais e internacionais, sem, contudo, perder as suas características diferenciadoras de cão de pastor de condução de rebanhos. Dotado de uma inteligência excepcional, a sua personalidade é marcante. É um cão rústico e versátil, onde sobressai a sua grande adaptabilidade.

O seu forte instinto de pastoreio impele-o a pastorear qualquer coisa. O que lhe é mais natural, ovelhas e cabras, como também piaras de cavalos, manadas de vacas, varas de porcos, gansos, galinhas… Em passeios com a família, não perde essa capacidade intrínseca, sendo notório o seu comportamento sempre alerta, em incansável movimento circular à volta dos elementos familiares, tentando mantê-los juntos como se estes fossem o seu rebanho. Sendo um cão criado e desenvolvido para o trabalho, foi essa capacidade singular aliada à sua adaptabilidade que possibilitou a sua fácil e eficaz passagem para cão de guarda e de companhia, função mais compaginável com a vivência dos nossos dias. Uma mais valia a respeitar e preservar e a ter em atenção nos julgamentos das provas de morfologia.

De temperamento vincado, é de grande fidelidade ao seu dono, dele se dizendo que “é cão de um só dono”, expressão comum, por muitos amiúde repetida. Anciãos do seu solar, com memória de factos de tempos passados, referem histórias de cães que se recusaram a acompanhar o ajudante e o rebanho na ausência do pastor. Esta ligação do cão com o dono atesta bem o grande e sólido carácter que anima o Cão da Serra de Aires. 

Originário do Alentejo, mais concretamente da freguesia de Santo Aleixo, concelho de Monforte, as suas origens perdem-se na memória, dos tempos e das pessoas. O seu nome advém do Monte de Serra de Aires, propriedade do Conde de Castro Guimarães. Perdura uma teoria que o cão actual, na sua morfologia bem distinta e fixada, deriva de um pequeno cão de pastoreio existente no Alentejo, que o Conde de Castro Guimarães, através de um seu feitor de origem francesa, melhorou, cruzando-o com cães originários de França, da raça Berger de Brie, conhecido, também, por Briard.

Em ambiente aberto como o Alentejo, as longas distâncias, a grande dispersão de propriedades e povoações, a generalizada privação que afectava as suas populações, admitir que o trabalho de selecção e reprodução levado a cabo, no dealbar do séc. XX, na propriedade do Monte de Serra de Aires, se propagou e controlou o efectivo da raça em toda a sua região de dispersão, poderá encontrar dificuldades de sustentação. Desde logo, devido ao grande número de efectivos à data existentes, com características morfológicas e comportamentais bem definidas e fixadas. Teria, ainda, de se admitir, que a partir de certo momento, e em dada altura, os efectivos teriam como proveniência o Monte de Serra de Aires, com pouca ou nenhuma influência externa nova a entrar na raça, o que não é plausível dada a prática secular da transumância que, até tempos não muito distantes, sempre ocorreu entre a região da Serra da Estrela, a norte, e as planícies alentejanas. Estudos realizados sobre a diversidade do DNA mitocondrial de raças autóctones portuguesas comprovam isso mesmo, a existência de partilha de haplótipos entre o Cão da Serra da Estrela e o Cão da Serra de Aires. Aliás, as migrações de populações e animais em tempos históricos, são entendidas e comummente aceites como o grande factor de dispersão e de surgimento de novas raças.

Sem nunca ter sido um cão muito conhecido fora da sua região de origem, como cão de trabalho o Cão da Serra de Aires era muito popular e utilizado, abarcando a sua distribuição as planuras do Alentejo e do Ribatejo. Essencial para a condução dos rebanhos entre zonas de pastagem, a sua grande inteligência tornava-o exímio no seu controle durante a passagem pela bordadura e proximidade de terrenos cultivados.

Fiel ao rebanho e ao dono, territorial, discreto e reservado, por norma, não dá a mão a estranhos. Estas características foram, por certo, procuradas e perpetuadas nos cruzamentos de sucessivas gerações, muito por força do grande isolamento que a imensidão das planícies alentejanas sempre impôs aos seus residentes. A geografia peneplana do Alentejo, onde são raros e quase inexistentes os grandes acidentes orográficos, dificultava o confinamento do rebanho e promovia o risco de dispersão dos animais. Era, por isso, necessário um cão com grande percepção territorial, animado de sentidos de guarda e protecção e que não se deixasse seduzir por eventuais aliciamentos de estranhos que porventura junto dele arrivassem. O pastor não podia arriscar a ficar sem o seu fiel companheiro e exímio auxiliar.

Embora a guarda também pudesse ser exercida pelo Cão da Serra de Aires, essa função era preferencialmente atribuída a um outro canídeo de maior porte, também autóctone, o Rafeiro do Alentejo. O pequeno porte do Cão da Serra de Aires facilitava o sustento, quando, ao tempo, a frugalidade da alimentação era ditada pela privação e escassez de alimento. Por outro lado, na mordida que impunha respeito e ordem, as ovelhas não eram tão castigadas.

A partir da década de 50-60 do Século XX, as novas práticas agrícolas e a extensa utilização de aramado na delimitação das propriedades ditaram o declínio dos efectivos da raça. A sua função já não era tão necessária. Mas foi nesta altura, que um aturado trabalho de prospecção permitiu identificar os animais que serviram de referência à elaboração do primeiro estalão da raça, publicado em 1954. Datam, também, destes anos iniciais, o registo dos primeiros animais inscritos no Livro de Origens Português: Montemor (5.947), Arrábida (5.994), Massanica (5.999) e Pulgão (6.000).

O estalão de 1954 definia para os machos uma altura ao garrote de 42 a 48 cm, e para as fêmeas de 40 a 46 cm. A última revisão do estalão, bem detalhada e pormenorizada, publicada em 2008, define alturas de 45 a 55 cm e de 42 a 52 cm, respectivamente para machos e fêmeas. Não será alheio a este crescimento dos cães, a alteração da sua função primordial de cão de condução e de protecção e guarda de rebanhos para animal de companhia, ao qual estará associado a introdução na alimentação de rações que apregoam conterem os ingredientes necessários a uma alimentação completa que promove a saúde e o bem-estar animal.

As exposições e os concursos de morfologia podem, também eles, estar a promover a alteração das características morfológicas típicas. Nem sempre orientadas por citérios relacionados com a função, essas alterações podem fazer emergir uma divergência morfológica entre os cães de trabalho e os cães de exposição. É importante para o futuro da raça que se mantenha uma permanente supervisão do tipo morfológico e que se promova o cruzamento controlado entre animais de exposição e de trabalho, para assim se evitarem divergências indesejáveis da sua morfologia típica. Por indissociável, impõe-se igualmente preservar o temperamento de trabalho do Cão da Serra de Aires, garante do seu carácter e habilidade natural. A morfologia e o temperamento são pilares estruturais da função. O Cão da Serra de Aires é, inquestionavelmente, um relevante componente do património genético português. A sua tipicidade e unicidade conferem-lhe atributos exclusivos que importa defender e preservar. A sua história é uma história de sobrevivência. Uma sobrevivência amoldada por uma rusticidade construída nas agruras da adversidade, que um temperamento convicto e uma inteligência excepcional guindou para um lugar cimeiro e referencial das raças portuguesas.