The first dogs

Os primeiros cães

Aliciante e entusiasmante, sem dúvida, ler e pesquisar documentos históricos da raça canina bem portuguesa Cão da Serra de Aires. Se é verdade que esta raça está intrinsecamente ligada ao desenvolvimento humano, também não o é menos, e não despicienda, a sua ligação às políticas de desenvolvimento agrário e pecuário do Alentejo.

Alguns dos primeiros exemplares registados foram identificados em instalações geridas por entidades públicas. Esses exemplares foram essenciais para o desenvolvimento da raça e só muito dificilmente não estarão na base de todos os cães actualmente existentes. Deles será feita posterior e oportuna referência.

Por primeiro, a primazia da referência é devida a Montemor, o primeiro cão registado, com o número 5.947, nascido em 1950 e propriedade do distinto médico veterinário Dr. Filipe Morgado Romeiras, pioneiro, a par do também médico veterinário Dr. António Cabral, na identificação de exemplares típicos que vieram a definir a morfologia tão característica e fixada da raça.


O cão Montemor e as primeiras medidas de referência publicadas no Livro Português de Origens, 1955

As típicas características de Montemor fizeram dele a referência para a definição do primeiro estalão da raça publicado em 1954. Essas medidas e proporções ainda hoje se mantêm, embora algumas alterações posteriores tenham sido introduzidas, num processo normal que reflecte a natural evolução da raça.

Na alteração de 1966 o chanfro é descrito como sendo de perfil rectilíneo ou ligeiramente côncavo e a cor vermelha é retirada. Na revisão de 1996, a altura dos machos sobe para 45 a 55 cm e a das fêmeas de 42 a 52 cm. Esta alteração da altura deveria ter sido acompanhada por concomitante alteração do peso. Porém, e por lapso, essa alteração não foi incluída no estalão. Só em 2008, em resultado do trabalho desenvolvido pela comissão técnica presidida pelo prestigiado juiz português de mais de 190 raças, Pedro Delerue, é incluída a alteração do peso harmonizada com a altura e publicado o estalão actual.

O enriquecimento e detalhes então introduzidos são um extraordinário exemplo de revisão de um estalão, sem que isso promovesse ou resultasse numa alteração da morfologia da raça. Bem pelo contrário, são um reforço considerável das características morfológicas originais do Cão da Serra de Aires.

Primeiro registo não é sinónimo de cão mais antigo. Essa prerrogativa vai para Massanica, uma cadela nascida em 1947, com registo número 5.994, propriedade da Estação de Fomento Pecuário do Sul, que, por essa altura, possuía ainda Pulgão, um macho com o registo número 6.000, nascido a 1/5/1950 (Livro Português de Origens, 1955).

Estação de Fomento Pecuário do Sul foi a designação da Coudelaria de Alter de Chão nos anos de 1952 a 1957, ano a partir do qual passou, também, a ser designada por Estação de Fomento Pecuário Alto Alentejo. Em 1981 assumiu a nova designação de Estação Regional de Fomento Pecuário do Alto Alentejo (Coudelaria de Alter), designação que durou somente dois anos. Em 1983 assumiu a identidade que mantém até aos dias de hoje, Coudelaria de Alter. De 1947 a 1972 a Coudelaria foi dirigida pelo Dr. Manuel Leitão (Margarida Elias, 2017), ele também um criador de Cão da Serra de Aires.

Tudo aponta para que a Coudelaria de Alter tenha sido um lugar de relevante importância para o Cão da Serra de Aires, pelo menos desde meados da década de quarenta do século XX, mantendo-os e fazendo uso das suas superiores e reconhecidas aptidões para o pastoreio.

Dos primeiros vinte cães registados na década de 50 do século passado, o Dr. António Cabral foi proprietário de onze e criador de doze, o que denota a relevância do trabalho deste prestigiado médico veterinário no desenvolvimento e promoção da raça. Por esta altura, os cães de sua criação já tinham o afixo Alvalade, e foram dele os primeiros cães, Estremôs de Alvalade e Elvas de Alvalade, que chegaram à Estação Zootécnica Nacional, actual INIAV – Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária, localizada na Quinta da Fonte Boa, Santarém.

A Estação Zootécnica Nacional prosseguiu uma prática de reprodução que se prolongou por 20 anos, de onde saíram, entre outros, 86 cães com o afixo Fonte Boa.

Listagem dos primeiros registos do Cão da Serra de Aires, 1955
Registo, NomeCriadorProprietário
5.947 Montemor (1950) Dr. Filipe Morgado Romeiras
5.994 Arrábida (1950) Dr. António Cabral
5.995 Cortiçadas (1948) Dr. António Cabral
5.998 Ariega (1949) Dr. António Cabral
5.999 Massanica (1947) Estação de Fomento Pecuário do Sul
6.000 Pulgão (1950)Estação de Fomento Pecuário do SulEstação de Fomento Pecuário do Sul
6.014 Beja (1954)Dr. António CabralDr. Manuel António Brito da Silva Passos
6.228 Macaco (1953) D. Luís Thiago Abreu da Costa de Sousa Macedo (Mesquitela)
6.308 Elvas de Alvalade (1955)Dr. António CabralEstação Zootécnica Nacional
6.309 Estremôs de Alvalade (1955)Dr. António CabralEstação Zootécnica Nacional
6.321 Gonçala (1950) Dr. António Cabral
6.423 Elo de Alvalade (1955)Dr. António CabralDr. António Cabral
6.424 Era de Alvalade (1955)Dr. António CabralDr. António Cabral
6.425 Esperança de AlvaladeDr. António CabralDr. António Cabral
6.426 Almansor de Alvalade (1955)Dr. António CabralDr. Filipe Morgado Romeiras
6.427 Elmo de Alvalade (1955)Dr. António CabralDr. António Cabral
6.428 Escudo de Alvalade (1955)Dr. António CabralDr. António Cabral
6.429 Estrela de Alvalade (1955)Dr. António CabralDr. António Cabral
6.430 Évora de Alvalade (1955)Dr. António CabralDr. Filipe Morgado Romeiras
6.494 Emir de Alvalade (1955)Dr. António CabralDr. António Cabral
Listagem dos primeiros cães registados e respectivos proprietários e criadores

Do cruzamento de Estremôs de Alvalade com Elvas de Alvalade nasceram, entre outros, Fumo (6.943), propriedade de D. Maria José de Sousa e Holstein Beck (Marquesa de Tancos), Gaiato (7.250), propriedade da Sociedade Agrícola da Fonte Bela, Lda., Galito (7.252), propriedade da Sociedade Agrícola de Alorna e Gabiru (7.296), propriedade de Herdeiros de Paulino da Cunha e Silva.

Com a introdução destes cães versáteis e multi-competentes nas grandes casas agrícolas e importantes ganadarias do distrito de Santarém, a Estação Zootécnica Nacional promoveu a disseminação do Cão da Serra de Aires pelo vale do Tejo, sendo conhecidas evidências da sua utilização na freguesia do Pego, concelho de Abrantes, no pastoreio de rebanhos de ovinos e caprinos.

Em 1953, o Dr. António Chitas Martins regista o cão Refilão (6.781), filho de Faz-Tudo e Maravilha. Este cão é aqui referido somente a título de curiosidade, pois para além de o seu nome poder indicar um traço da sua personalidade, também o de seus pais poderá ser indicador da excelência das suas competências de trabalho e a satisfação e apreço que por eles era nutrido.

O Cão de Serra de Aires é, de facto, um cão que não deixa ninguém indiferente, e para quem os adjectivos qualificativos são escassos. É um cão que tem a capacidade de despertar fortes emoções e sentimentos extremos.