Por: João Ribeiro, Pedro Delerue, Helena Dornellas Cysneiros
A evolução e difusão dos cães pastores está indelevelmente ligada à prática da transumância, seja ela de longas ou de curtas distâncias. Recuar no tempo ajuda a melhor compreender este fenómeno, porquanto nos descontextualiza da adquirida organização das sociedades modernas que todas as necessidades satisfaz, e nos transporta para realidades idas e seculares, de vastas regiões esparsamente povoadas em que o modo de vida era ditado pela espartana escassez de recursos, numa fadigosa e permanente labuta pela sobrevivência.
A relação do homem com o meio é contruída em contexto primordial adverso. A agricultura e a pastorícia são expressões de domínio sobre a imprevisibilidade da Natureza. Os ciclos anuais das estações ditam as regras das práticas agropecuárias. Geração após geração, deslocações seculares de homens e animais abrem extensas rotas calcorreadas na procura de melhores terras de apascentamento para os animais, que hão de garantir a subsistência e a sobrevivência aos rigores do clima.
A Península Ibérica, sujeita aos climas Atlântico e Mediterrânico, dispõe de condições que favoreceram a prática transumante. Importante já na idade média, é no século XVIII que se regista a sua maior expressão. A industrialização dos processos de fabrico promoveu a demanda por lã de qualidade. O número de animais e de rebanhos sofreu grande incremento, e com ele a necessidade de zonas de pastagem. Os deslocamentos passaram a ser maiores e com mais animais.
Por esta altura, existiam na Península Ibérica inúmeras rotas de transumância, em particular em território espanhol, onde desde o século XII, com Afonso VIII, e século XIII, com Afonso X, Rei de Castela e Leão, a pastorícia, considerada de grande importância económica, gozava de especial protecção jurídica e institucional. Em Portugal, embora de menor dimensão e menos organizada, a actividade transumante foi objecto de alguma regulamentação nos reinados de D. João II e seguintes até ao reinado de D. João IV.
Da Serra da Estrela seguiam os animais para Norte, para a Serra de Montemuro, para Oeste, para os campos do Baixo Mondego, para Este, para os campos de Idanha e para Sul, para os Campos de Ourique. Os rebanhos, alguns de considerável tamanho, com vários milhares de cabeças, eram acompanhados por cães, que os ladeavam, uns nos flancos, outros na rectaguarda. Burros seguiam-nos, a fechar o cortejo, transportando nas albardas mantimentos e pertences. Nos alforges acomodavam-se os borregos nascidos durante os deslocamentos.
Junto à fronteira, por vezes transporta, refregas existiam, na reclamação de pastos que os animais não sabiam ser de um lado ou do outro. Encontrado o pagamento de satisfação, conflitos resolvidos, certo é que a actividade transumante se estabeleceu e permaneceu durante séculos na Península Ibérica como actividade económica de grande importância, influenciadora e criadora de hábitos e culturas, de organizações sociais, constituindo, sem dúvida, uma das maiores expressões do património genético e cultural dos povos da bacia Mediterrânica.
Robustecidos pelas longas deslocações, os animais, beneficiados fisicamente, viam apurada uma rusticidade que induzia melhorias genéticas, a cães e gados. De ambos os lados da fronteira, eram comuns os cães de gado, amastinados e de grande porte. Até aos finais do século XIX, os rebanhos eram maioritariamente acompanhados por este tipo de cães, só a partir daí se generalizando a utilização de cães de condução. A intensificação da agricultura, com ocupação de áreas cada vez mais extensas, obrigava a cuidados acrescidos na passagem dos rebanhos pelas proximidades das terras cultivadas.
Curiosamente, só em Portugal, em terras planas, emergiu uma raça canina de condução de rebanhos de pêlo comprido, o Cão da Serra de Aires. Em Espanha, unicamente em terras de montanha, nos Pirenéus, é encontrada raça similar: o Pastor dos Pirenéus e o Gos d’Atura (Pastor da Catalunha). A similitude morfológica entre estas três raças é evidente e inegável. Porém, é cada vez mais apontada como certa, por vários autores, a existência de evidências que colocam estas três raças num ramo à parte das suas congéneres continentais europeias.
O desaparecimento dos grandes predadores, ou a sua remissão para áreas remotas pouco perturbadas, longe das populações humanas, minimizou as necessidades de defesa e criou a oportunidade para a emergência, diversificação e difusão de raças de médio porte, mais ágeis e mais dotadas para a função de condução.
Na Península Ibérica, profusamente retalhada por rotas ancestrais de transumância, o declínio desta actividade a partir do século XIX, tão importante nos séculos precedentes, não criou as condições, verificadas na Europa Setentrional e Oriental, para a difusão por via terrestre das raças de condução ibéricas. A orografia acidentada, onde mesetas interiores elevadas com altitude média de 650 metros, bordeadas por montanhas com picos que vão dos 1.000 a mais de 3.000 metros, e rios com percursos extensos e de largura considerável, constituía obstáculo de difícil transposição.
Nas altas terras da Cantábria nasce aquele que é maior rio de Espanha com curso integral em solo espanhol, o Ebro. Contrariamente a todos os outros grande rios Ibéricos, com percurso para Oeste em direcção ao Atlântico, o Ebro desenvolve-se para Este, desaguando no Mediterrâneo. Na sua caminhada de 930 km até o mar, drena uma bacia hidrográfica com mais de 85.000 km2. Cortando imponentes relevos, descansa em largos meandros ao atravessar as planuras da meseta, irrigando vastas e férteis terras de cultivo. Num último esforço, rasga o complexo Aligars-Serra Fulletera antes de se lançar em largo delta nas águas do mar das Baleares.
Com as suas enchentes mais frequentes de Outubro a Março, que se podem prolongar até Maio, alimentadas pelo degelo dos Pirenéus, o Ebro constitui um obstáculo considerável, de difícil transposição.
As rotas de transumância do nordeste da península, quer as pirenaicas, a norte, quer as do sistema ibérico, a sul, nunca transpõem o rio Ebro. Não há ligação entre estas rotas e as da rede do centro da Península Ibérica, confinantes, na Estremadura espanhola, com as do Alentejo português. A inexistência de cães de pastor de pêlo comprido nesta vasta área central da península é, também, indicador que importa relevar e considerar. Na sua conjugação, estas evidências comprometem, senão mesmo inviabilizam a via terreste de comunicação e de contacto do Pastor dos Pirenéus com o Cão da Serra de Aires. A via de comunicação, a existir, teria de ser outra, que não a terreste.
O Pastor dos Pirenéus tem, tal como o Cão da Serra de Aires, uma história propensa ao fantástico, a ponto de o considerarem, na sua terra natal, como descendente do urso, que nele veem similitude morfológica e de andamento(!), ou, noutra versão, resultado de um cruzamento entre cão e raposa. Com a imaginação por limite, fica-nos o encanto da resposta mágica que, em vã tentativa, procura, na fantasiada explicação, obter resposta para a insatisfeita inquietude de uma origem incompreendida e pouco conhecida.
Da fantasia uma certeza. A origem do Pastor dos Pirenéus é diferente da de todas as outras raças francesas de cão pastor, sendo que o que o distingue é a sua morfologia, aquilo que tem em comum com o nosso Cão da Serra de Aires, e que tão bem foi notado pelos ilustres criadores do seu estalão original.
Mais racionais, alguns naturalistas aventam a hipótese da autoctonidade da raça. Apesar de tudo, a sua história só começou a ser escrita em 1921, sendo necessário esperar até 1925 para que seja reconhecida como raça autónoma, obtendo no ano seguinte o seu reconhecimento oficial pela Société Centrale Canine. É na década seguinte que em Portugal se iniciam, também, os trabalhos de reconhecimento do Cão de Serra de Aires. De origem igualmente envolta em auréola imaginária, poderá não ser totalmente descabido considerar a conceptível autoctonidade da raça, atentando na premonitória observação dos doutores Filipe Morgado Romeiras e António Cabral, que nele viram um morfótipo do pequeno cão pastor francês.
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