Uma perspectiva
Por: João Ribeiro, Pedro Delerue, Helena Dornellas Cysneiros
Memórias perdidas, fragmentos recuperados, notas rasuradas em margens de páginas, imagens, ilustrações, gravuras, peças cerâmicas, rica ou toscamente decoradas, pedra, madeira, osso, marfim, do mais nobre ao mais humilde material, tudo serviu, para o homem, em acto de veneração, ilustrar para a posterioridade, atravessando séculos, milénios, a relação simbiótica que estabeleceu com aquele que sempre o acompanhou na construção de civilizações, umas extintas, outras ainda pujantes.
Voluntariamente, prescindiu dos seus atributos de predador, modificou o seu comportamento, adaptou-se às funções que não lhe eram próprias, mas úteis àquele que aceitou como companheiro de viagem, de infortúnio e glória, de bonança e de tempestade, pela história dos tempos, até uma actualidade que lhe concede reconhecidos direitos, de quase par.
A névoa dos tempos ofuscou, e mantêm misteriosa, a clareza desta relação ímpar, uma relação de metamorfose, de aquisição de novos comportamentos, de novas formas, de contínua adaptação a novas funções, e que dele fazem o mamífero mais versátil, sem igual, nenhum outro existindo que se lhe compare.
A arqueologia e a ciência aliam-se no interesse da descoberta, da compreensão de uma relação que, algures, num tempo remoto, o entrecruzamento, fortuito, de dois seres, convergiu numa evolução simbiótica, inquebrantável, de benefício comum.
De onde veio, como veio? Não é certo, mas é cada vez mais incerto. Da Ásia parece ser o consenso geral, mas como… aí o consenso não é tão fácil.
O mistério que envolve a origem das raças de cão de pastor e de condução de rebanhos é partilhado pelo nosso bem característico e único Cão da Serra de Aires. Como seria de esperar, partilha uma origem comum a todas as outras raças, mas houve um tempo em que encontrou a sua individualidade.
A sua conhecida história, ainda recente, a ausência e raridade de referências históricas, contribuem para manter o encantamento do mistério da sua origem, que persiste em colar-se-lhe e se recusa a abandoná-lo.
A dúvida, ainda hoje não desfeita, existia, já, no espírito dos dois primeiros ilustres estudiosos do Cão da Serra de Aires, que procuraram e identificaram os primeiros animais e definiram o seu primeiro estalão, Dr. Filipe Morgado Romeiras e Dr. António Cabral: “Os cães existentes, em número tão elevado e com características tão fixadas, estão de tal forma diferenciados e mais se assemelham ao Cão de Gado dos Pirenéus, que cuidamos serem, antes, um ramo desta raça, que se pretendeu melhorar com o Berger de Brie. A não ser esta a razão, nem se compreende porque se escolheu para cão de gado no Alentejo uma raça que dificilmente se adaptaria ao clima desta região”.
A inaptidão do Berger de Brie para o clima do Alentejo é abordada e desde logo posta em evidência. A ter existido algum cruzamento entre este cão e o Cão da Serra de Aires, mais não seja pelo que é comummente dito e repetido, é plausível que isso possa ter ocorrido no Monte de Serra d’Aires, mas com dificuldade se pode aceitar que os resultados desses cruzamentos se tenham propagado pela região e pelo Alentejo. Atente-se novamente na afirmação dos distintos médicos veterinários: “Os cães existentes, em número tão elevado e com características tão fixadas, estão de tal forma diferenciados (…)”. A ser assim, e estando o cão tão bem diferenciado, perfeitamente adaptado ao clima do Alentejo e à função, que benefício adviria de um cão como o Berger de Brie? Inteligência? Não. Funcionalidade? Não. Temperamento? Não. Morfologia? Seguramente que não. Os pastores da década de quarenta dos anos de mil e novecentos, pessoas de poucas posses, de recursos limitados, com pouca formação e instrução, não valorizariam esse aspecto. A aptidão para o trabalho sim. Altura? Pouco provável. Para quê um cão de maior porte se já tinham o Rafeiro Alentejano? Além disso, um cão de maior porte é mais exigente em alimento, de mais difícil sustentação. E dois cães pequenos fazem mais trabalho que um grande, especialmente no concernente ao trabalho de condução de rebanhos. De facto, dificilmente se vislumbram vantagens para a introdução do Berger de Brie. Mesmo o critério da beleza é altamente questionável. O calor e inclemência do sol alentejano impunha a tosquia anual ao Cão de Serra de Aires, ao mesmo tempo que as ovelhas e com a mesma tesoura.
Os pastores, tal como os caçadores, praticavam uma selecção empírica, não se coibindo, por terem ouvido, de irem longe fazer uma monta, ou, solícitos, pedir por cachorro que, em esperança, fosse como seus afamados progenitores, satisfazendo ansiada ambição de possuir exemplar com iguais e celebradas aptidões para o trabalho, prevalentes sobre critérios morfológicos ou quaisquer outros.
Historicamente, e por esses tempos, o Alentejo era uma região deprimida, causticada pela inclemência de um clima adverso, severo para com os seus, onde o alimento era aforrado com abnegação e partilhado na necessidade da entreajuda, entre homens e animais de sustento e de trabalho. A míngua da escassez ditava a lei da sobrevivência, de uns e de outros, mas menos dos animais. Cão dotado era estimado, valorizado pelas suas aptidões. O contrário impunha a quase certa indiferença e a sobrevivência condicionada.
Curiosamente, à data, e atentando aos seus escritos, se depreende que já os Doutores Filipe Morgado Romeiras e António Cabral consideravam inverosímil o contributo do Pastor de Brie para o melhoramento da raça no seu todo. Premonitórios, e somente pela análise morfológica, foram capazes de discernir e vislumbrar a relação com o Cão de Gado dos Pirenéus. Admiravelmente, a ciência de hoje, com a panóplia de meios e tecnologia avançada de que dispõe, parece estar a dar-lhes razão. Estudos genéticos recentes, realizados por grupos de investigação distintos, apontam na mesma direcção.
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